A banca FCC, organizadora do concurso do TRT-1 (RJ), fez uma cobrança temática em seu estilo clássico, exigindo do candidato profunda reflexão interpretativa e pensamento abstrato sofisticado.
O tema de redação cobrado foi uma frase do poeta Ferreira Goulart: a crase não foi feita para humilhar ninguém.
A frase de Ferreira Goulart, utilizada como tema da redação do TRT1, propõe uma reflexão crítica sobre o uso da norma padrão da língua portuguesa como instrumento de exclusão social. Ao afirmar que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, o poeta denuncia a forma como determinados saberes gramaticais são frequentemente usados não apenas como ferramentas de comunicação, mas como mecanismos simbólicos de opressão, reforçando hierarquias sociais e marcando a distinção entre “letrados” e “iletrados”.
A crase como símbolo do preconceito linguístico
A frase pode ser interpretada como uma crítica ao preconceito linguístico, conceito amplamente discutido por linguistas como Marcos Bagno. Em sociedades marcadas pela desigualdade de acesso à educação formal, o domínio de elementos gramaticais complexos — como a crase — torna-se um marcador de distinção social, sendo utilizado para julgar a inteligência ou o valor de uma pessoa. Assim, o que deveria ser apenas uma convenção gramatical transforma-se em instrumento de humilhação para aqueles que não dominam a norma-padrão.
A linguagem como capital simbólico
Outra possbilidade argumentativa leva à teoria de Pierre Bourdieu, especialmente à ideia de “capital cultural” e “violência simbólica”, conceitos que eu ensinei em diversas aulas do curso. Segundo o sociólogo francês, o domínio da norma-padrão é um tipo de capital simbólico que confere prestígio e poder a quem o detém. Nesse contexto, a escola e os concursos públicos — que exigem o domínio formal da língua — acabam por reforçar desigualdades históricas, ao valorizar formas específicas de linguagem e desvalorizar outras, como as variantes populares. A frase de Goulart, portanto, alerta para a naturalização desse processo excludente.
RVidas Secas e a exclusão pela linguagem
No campo literário, a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é uma excelente analogia. No módulo de Alusões Literárias do curso, fiz reflexões associando essa obra ao preconceito linguístico e às reflexões de Bourdieu sobre Distinção Social.
A personagem principal do livro, o vaqueiro Fabiano, um homem do sertão que mal sabe se expressar, vive um conflito profundo com a linguagem. Ele se sente “bicho” diante dos que dominam a norma, como o soldado amarelo. A angústia de Fabiano simboliza a dor de quem não domina o “código legítimo” da sociedade e, por isso, é constantemente humilhado. A crase, nesse caso, torna-se metáfora para esse sistema que exclui os que não falam “corretamente”.
Educação libertadora versus linguagem opressora
A frase de Goulart nos convida a refletir sobre o papel da educação: ela deve libertar, não oprimir – tudo a ver com os pensamento do educador Paulo Freire. A língua portuguesa — e seus elementos como a crase — deve ser ensinada com empatia e inclusão, não como forma de distinção social.
Sugestões de Repertório Sociocultural
Pierre Bourdieu: conceitos de capital cultural, violência simbólica e distinção social.
Marcos Bagno: obra Preconceito Linguístico – o que é, como se faz.
Graciliano Ramos – Vidas Secas: exclusão social e linguagem como símbolo de opressão.
Paulo Freire: educação como prática da liberdade, e não da opressão.
Confira o vídeo do Mago da redação sobre o tema de redação do TRT-1 (RJ)
Modelo de Redação sobre A crase não foi feita para humilhar ninguém
Em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, o protagonista Fabiano é um exemplo de como o preconceito linguístico pode afetar quem não domina a norma culta. Nesse contexto, a forma como ele se expressa é frequentemente ridicularizada, cenário que se repete na realidade brasileira atual por meio da discriminação das variantes informais da língua portuguesa e da exclusão dos que não tiveram acesso à variedade padrão.
De fato, a sociedade brasileira julga as pessoas pela forma de falar e escrever. Sob tal prisma, aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer a norma culta da língua são privilegiados na sociedade, enquanto os desprovidos desses saberes sofrem preconceito linguístico – conceito do professor Marcos Bagno para se referir à avaliação negativa das variantes não padrão da língua. A exemplo disso, veem-se pessoas que são ridicularizadas nas redes sociais por causa de erros gramaticais ou ortográficos que não prejudicam o entendimento.
Além disso, a valorização excessiva da norma culta reduz oportunidades aos mais pobres. Nesse sentido, tais saberes linguísticos são considerados capital cultural de prestígio, ou seja, conhecimentos que são legitimados e valorizados, conforme o conceito de Pierre Bourdieu. Como consequência, crianças em famílias abastadas têm a vantagem de apreender a norma culta na relação com os pais e em escolas privadas, enquanto os menos favorecidos possuem maiores dificuldades de dominá-la e acessar oportunidades.
Desse modo, resta claro que a gramática é um conjunto normativo com função de ordenar e estabilizar o português, de modo que seu conhecimento não deve gerar discriminação ou exclusão. Com base nessa premissa, é preciso valorizar as variantes dos inúmeros “Fabianos” do Brasil.